BBC Brasil - Passava das 22h30 do último dia 2 de outubro quando o então candidato
a verador por São Paulo Edmar Luz (PPS-SP) publicou em seu perfil no
Facebook uma nota de agradecimento aos 709 eleitores que votaram nele.
Minutos depois, começaram a surgir as primeiras mensagens em sua
timeline: algumas de apoio, outras de zombaria.
Dos mais de
480 mil candidatos a vereador, Edmar era o único declaradamente ateu do
Brasil. "Enquanto uns demonstram curiosidade em saber como um ateu lida
com as questões cruciais da vida, como morte e doença, outros, mais
exaltados, reagem com desprezo e agressividade", relata o candidato.
Durante
a campanha, Edmar perdeu a conta das vezes em que foi insultado nas
ruas. A cena era sempre a mesma: ele distribuía o "santinho" com a
propaganda política, o eleitor dava uma rápida lida no papel e, dali a
pouco, vociferava algum palavrão, indignado.
"Demônio" e
"Satanás" eram os mais recorrentes. Não bastasse, ele sofreu ataques nas
redes sociais e, o mais curioso, recebeu críticas até de quem também se
diz ateu.
BBC Suzana Herculano-Houzel, da Universidade de
Vanderbilt Neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade de
Vanderbilt, nos EUA, também demorou a declarar-se ateia 1
Mas
Edmar diz não se intimidar: afirma que continuará a defender, nas
próximas eleições, um Estado laico de fato e o fim do preconceito contra
ateus.
Uma pesquisa de 2007 encomendada ao CNT/Sensus revelou
que apenas 13% dos eleitores brasileiros votariam em um candidato ateu
para presidente da República. Para efeito de comparação:
84% votariam em
um negro, 57% em uma mulher e 32% em um homossexual.
Até hoje,
há quem diga que Fernando Henrique Cardoso só não ganhou de Jânio
Quadros na disputa pela prefeitura de São Paulo, em 1985, porque
titubeou diante de uma pergunta do jornalista Boris Casoy, no último
debate na TV, sobre sua crença em Deus.
"É difícil ser ateu no
Brasil porque negar a existência de Deus contraria o modo de viver da
maioria da população", analisa Geraldo José de Paiva, coordenador do
Laboratório de Psicologia Social da Religião, do Instituto de Psicologia
da USP. "Mexer com Deus é como mexer com a mãe", compara.
"Religião não define caráter"
No
Brasil, a rejeição aos ateus não se limita aos que pleiteiam cargos
políticos. Levantamento da Fundação Perseu Abramo, de 2008, mostra que
42% dos brasileiros admitem sentir aversão aos descrentes. Desses, 17%
declararam sentir ódio ou repulsa e 25%, antipatia.
"Já fui até
ameaçado de morte", afirma Daniel Sottomayor, um engenheiro civil que
ajudou a fundar, em 2008, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos
(Atea) ─ entidade que reúne 17 mil membros e mais de 592 mil seguidores
no Facebook.
Inspirada em uma campanha britânica, a Atea tentou estampar anúncios
em ônibus de quatro capitais brasileiras, em 2010. Não conseguiu. A
propaganda foi considerada ofensiva e rejeitada pelas empresas. Um ano
depois, nova investida. Dessa vez, a associação conseguiu espalhar
alguns poucos outdoors pelas ruas de Porto Alegre (RS), com slogans do
tipo "Religião não define caráter" ou "Somos todos ateus com os deuses
dos outros".
"Enquanto as notas de Real louvarem a Deus, as
escolas públicas tiverem ensino religioso e as repartições do governo
ostentarem crucifixos, os ateus continuarão ser tratados como cidadãos
de segunda classe", protesta Sottomayor.
Arquivo pessoal
Biólogo Eli Vieira em gramado no Reino Unido Para Eli Vieira Araújo,
da Universidade de Cambridge, as campanhas ateístas não são efetivas
porque se valem de slogans 1
Na opinião do biólogo Eli Vieira
Araújo, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, campanhas
ateístas não são efetivas porque se valem de slogans que, como qualquer
frase de efeito, estão "cheios de furos".
É o caso de "A fé não
dá respostas. Só impede perguntas". "Sabe quem refutaria essa frase?
Isaac Newton. Ele fez ciência só até por volta dos 30 anos. Depois
disso, dedicou-se à teologia", diz Araújo.
Um dos fundadores da
Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), Eli afirma que, quando o
assunto é não ter vergonha de se assumir publicamente, ateus e
agnósticos ainda têm muito a aprender com a experiência de gays e
lésbicas.
"Embora ainda seja difícil para muita gente lidar com
LGBTs fazendo carícias públicas, até quem tem ojeriza a eles reconhece
que estão dentro de sua liberdade num país laico", analisa.
O preconceito que ateus e agnósticos sofrem ao redor do mundo encorajou o cineasta Micael Langer a abordar o tema em Godless - The Truth Beyond Belief (Sem Deus - a verdade além da crença, em tradução livre) que deve chegar aos cinemas no segundo semestre de 2017.
Em
alguns países, negar a existência de uma entidade divina pode
significar a perda do emprego. Em outros, uma sentença de morte. "Muitas
vezes, os ateus preferem se trancar no armário a passar por situações
constrangedoras", diz.
Até o momento, Langer já entrevistou dois
dos incrédulos mais famosos do planeta: o biólogo evolucionista
britânico Richard Dawkins, autor de Deus, Um Delírio, e o sociólogo americano Phil Zuckerman, de A Sociedade Sem Deus.
"O
público-alvo do meu filme não são os ateus. Meu objetivo é trazer um
pouco de luz a um debate que, apesar de ser importante e afetar a vida
de milhões de pessoas, costuma ser varrido para debaixo do tapete."
"Deus prefere os ateus"
Originalmente, um dos entrevistados de Godless
seria Drauzio Varella. Quando ele diz às pessoas que não segue uma
religião ou acredita em Deus, quase sempre ouve a mesma resposta: "Mas, o
senhor? Uma pessoa tão boa...". "
Muita gente enxerga os ateus
por um viés religioso, como se fôssemos anticristos a serviço do
demônio", ironiza o músico e escritor Tony Bellotto, que diz ter "saído
do armário" por influência de Christopher Hitchens, jornalista e
escritor britânico que morreu em 2011.
Divulgação Tony Bellotto Músico Tony Bellotto diz ter "saído do
armário" por influência do jornalista britânico Christopher Hitchens 1
"Não compreendem que alguém pode ser ético, solidário e feliz
seguindo princípios humanistas e não preceitos religiosos", completa
Bellotto, que tem em seu escritório uma placa onde se lê: "Deus prefere
os ateus".
Desde que assumiu publicamente sua não-crença, o
guitarrista dos Titãs já passou por situações, no mínimo, inusitadas.
Certa vez, uma senhora no avião tirou da bolsa um folheto evangélico do
tipo "Jesus te ama" e ofereceu a ele, com a seguinte recomendação: "Leia
isso, vai te fazer bem". Quando Tony avisou que não acreditava em Deus,
foi obrigado a ouvir: "Mas, você tem que acreditar em alguma coisa!".
"Volta e meia, alguns me provocam dizendo que, na hora da morte, apelarei para Deus. A esses, recomendo a leitura de Últimas Palavras", rebate Bellotto, citando o livro póstumo de seu ateu favorito, Hitchens.
A
neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade de Vanderbilt,
nos EUA, também demorou a se declarar ateia. Por recomendação da mãe,
sempre relutou em dizer em cadeia nacional que não acreditava em Deus.
Em
2010, porém, ela rompeu o silêncio. Na crônica "Sou ateia e sinto-me
discriminada". Na época, recebeu dezenas de e-mails, a maioria deles em
tom condescendente, lamentando sua posição.
"Proselitismo é um
saco: pró ou contra religião. Ser vítima de pregação é sempre
desagradável. É uma pena que alguns ateus não entendam que as pessoas
religiosas têm tanto direito à sua religião quanto nós ao ateísmo",
afirma.
Mas, afinal, o que pode ser feito para combater a
intolerância? Para Tony Bellotto, não se deve misturar educação com
religião. "A doutrinação religiosa tem que estar fora das escolas",
enfatiza o músico.
Daniel Sottomayor, da Atea, defende leis mais
duras contra quem discrimina ateus e agnósticos. Já Suzana
Herculano-Houzel propõe incentivar as pessoas a pensar por si mesmas, a
ter espírito crítico e a exigir evidências antes de aceitar a palavra
alheia. "Mas a convicção tanto de que Deus existe quanto de que ele não
existe deve ser sempre respeitada", sublinha a cientista.
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